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dezembro 20, 2005

Homicídio Legal
Por Walter Fanganiello Maierovitch

“Assim como ao médico é legítimo amputar o membro infeccionado para salvar o corpo humano ameaçado, deve-se permitir ao Estado exterminar o elemento nocivo ao organismo social.”
A supracitada colocação não é do governador-ator Arnold Schwarzenegger, acostumado a interpretar no cinema o papel de vingador da sociedade, com tiros e muito sangue. Também não é da lavra de Lora Owens, sogra do caixa da loja onde trabalhava a vítima de um dos crimes de latrocínio atribuídos a Stanley Williams.
Schwarzenegger e Lora Owens disseram outras coisas sobre Stanley Williams, apelidado de Tookie, executado na terça-feira 13, com emprego de injeção letal ministrada na cela da morte do célebre presídio de San Quentin, a 30 quilômetros de São Francisco, na Califórnia.
Tookie, um negro de 51 anos, fora condenado à morte, em 1981, por quatro crimes de latrocínio (matar para roubar) consumados em 1979, ou seja, há mais de 26 anos. A decisão condenatória acabou confirmada pela Suprema Corte dos EUA. Suas imputadas vítimas foram, em lugares e momentos distintos, três imigrantes chineses, donos de um hotel, e o mencionado caixa de uma loja de conveniências noturna.
Para o governador-ator Schwarzenegger, que poderia ter transformado a pena capital em prisão perpétua, Tookie não merecia clemência. No seu juízo canhestro, isso somente seria possível caso tivesse confessado os crimes, condição reveladora de arrependimento.
No mundo civilizado, os penalistas ensinam que a emenda de um sentenciado é aferida pelas suas condutas posteriores à consumação dos crimes imputados. Na expiação da pena, o comportamento futuro é que revela a emenda (ressocialização).
No passado, Tookie era violento e organizou uma gangue juvenil de rua que aterrorizou Los Angeles nos anos 70. Nos mais de 20 anos de prisão, demonstrou mudança eticocomportamental.
Ele tornou-se símbolo na luta contra a violência e cultor da paz. Escreveu livros infantis e recebeu indicação ao Nobel da Paz. Como ensinava a penitenciarista espanhola Concepción Arenal, o condenado pode mudar o seu coração e a sua alma.
O juízo externado por Schwarzenegger foi medievalesco, a indicar apenas conseguir trabalhar com o binômio crime-vingança. Ou melhor, não se convence da emenda do condenado por meio de atos concretos, revelados no curso de mais de 20 anos. Pior ainda. Pelo que se comenta, a clemência do governador com relação a Tookie deixou de ser concedida para não abalar, ainda mais, o seu prestígio político. Como a pena de morte foi restaurada na Califórnia em 1977, Schwarzenegger, pelo noticiado, não quis tomar uma decisão impopular, apesar de um bem maior estar em jogo.
Nem as mobilizações internacionais em favor de Tookie sensibilizaram o governador da Califórnia, onde já foram executados 12 condenados. A execução de Tookie representou um espetáculo dantesco, presenciado por 17 jornalistas e 39 convocados, dentre eles cinco testemunhas indicadas pelo próprio condenado.
Para vários jornais europeus, a agonia de Tookie durou exatos 22 minutos, transcorridos entre a demorada aplicação do preparado letal injetado e a chegada da morte. Tookie recusou a última ceia. Bebeu um copo de leite e ficou com a televisão ligada à espera da remoção para a cela da morte. No cerimonial macabro da execução, preferiu deixar um significativo silêncio a exercitar o direito de dizer derradeiras palavras.
Na Califórnia, prevalece o pensamento de Santo Tomás de Aquino, que viveu no século XIII e que comparou a amputação médica à social, pela ordem do “príncipe” (Estado), como registrado no início desta coluna.
Nem o Vaticano, sob o papado conservador de Joseph Ratzinger, aprovou o homicídio legal consumado em San Quentin. Depois da execução de Tookie, o cardeal Renato Martino frisou representar “a pena de morte a negação da dignidade humana”.
Como se percebe, e no particular, a Igreja volta a consagrar a doutrina da Metanóia, ou seja, deve-se acreditar, diante de condutas condenáveis passadas, na “mutação da mente, de toda a maneira de pensar, agir e viver, ou seja, na conversão total do homem”. No campo laico, a Califórnia acabou por fazer tábula rasa a Cesare Bonesana, conhecido como Marquês de Beccaria, que foi o precursor do direito penal moderno, de natureza humanista.
Em 1764, no seu chamado Pequeno Grande Livro, Beccaria alertava não ser justo que o homicídio – que nos ensinavam ser um crime hediondo e que não deveríamos nem pensar em cometer – possa ser praticado friamente, sem remorso, pelo próprio Estado.
Resumindo: em pleno século XXI, cometeu-se um homicídio legal. O assassino, frio e vingativo, foi o estado da Califórnia.

Posted by Sandino at dezembro 20, 2005 10:08 AM

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