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dezembro 12, 2008

Interesse público x vida privada

Na sociedade democrática, o direito à privacidade e a liberdade de expressão são constitucionalmente tutelados. E como proceder quando a liberdade de expressão colide com o direito à privacidade? A discussão sobre interesse público e vida privada sempre é e será pertinente, rendendo bons debates. O jornalista Marcello Lujan enfoca o tema, em um caso que envolveu uma autoridade pública pega “com as calças na mão” em pleno batente. O que fazer? Um caso assim deve ser publicado ou não?

Quando o carteiro chegou...
Por Marcello Lujan

Era um final de manhã ensolarado e a rotina na redação permanecia sendo ditada pelos ponteiros do relógio. Nenhuma novidade importante e as dificuldades eram as mesmas - para quem ousa produzir o jornalismo independente e fiscalizador.
O latido do Lino alertou para presença do carteiro. No meio das correspondências, uma chamou a atenção. De imediato, foi possível perceber que havia algo de estranho naquele envelope cinza, parecendo conter um CD ou DVD. Ao abrir a carta, comprovei que havia mesmo um CD e mais algumas folhas contendo um suposto diálogo – pra lá de pitoresco.
Ao ler trechos do diálogo que teria sido degravado do CD, fiquei ainda mais estarrecido com o conteúdo – que envolvia uma autoridade no exercício de suas funções públicas acompanhado por uma mulher. O babado era forte! No melhor estilo das pornochanchadas de David Cardoso, o diálogo estava repleto de galanteios pretensiosos, abusados e baratos.
Era preciso então ouvir o CD e comprovar se aquele absurdo era real.
De cara, foi possível identificar a voz de um dos personagens e com o áudio ficou claro qual era o clima que envolvia o casal. Também fiquei com a impressão que não havia nenhuma edição no áudio e o picante diálogo tinha sido captado na íntegra.
Não demorou e o telefone começou a tocar. Outros meios de comunicação e algumas pessoas também haviam recebido a mesma correspondência. Até uma emissora de televisão entrou em contato com nossa redação. Percebi que minha manhã tinha ido por água abaixo e que no almoço não ouviria os comentários do Neto - xodó da Fiel.
Na redação ficou acordado que não comentaríamos o caso, até refletirmos sobre sua gravidade e o que faríamos com tal bomba – digna de Hiroshima, Nagasaki e de todas as outras já detonadas por aí. Tínhamos ciência que poderíamos interferir no andar da carruagem.
E o telefone tocava...
- Vocês viram? Vocês querem uma cópia? Vão divulgar?
A resposta passou a ser mecânica, justificando o desinteresse no caso em virtude de nossa edição, que já estaria concluída e fechada. Ficamos mesmo sem almoço. Era preciso refletir, parcimônia...Não se tratava de medo, covardia ou outras desculpas. A questão que martelava era a ética.
- Ética? Vocês são atacados todos os dias! Manda bucha e desmascarem esse santo do pau oco (e viagrado) - foi uma das sugestões ouvidas.
Alguém também resgatou Cazuza para cobrar a publicação do caso.
- Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro e isso aí sim que é um puteiro pra se ganhar mais dinheiro.
Alheios aos comentários, prosseguiam as reflexões sobre a ética e o limítrofe imaginário que separa interesse público e vida privada.
Não demorou e alguém lembrou o comportamento da imprensa de alguns países diante de casos semelhantes.
- Na Inglaterra isso iria render pelo menos um mês de manchete. Nos Estados Unidos a casa caía. Perto disso o caso Mônica Lewinsky parece estória de ninar.
Também foram lembrados os episódios Zélia Cardoso & Bernardo Cabral, Collor, Itamar... Sobrou até para o Ronaldo (Fenômeno!), Daniela Cicarelli e para o chefão da F1.
Lembrei então das longas aulas da disciplina de Ética na universidade. Deve-se separar a conduta e postura de um homem público de sua vida particular? E se ele for pego com as calças na mão em pleno batente?
Novamente alguém interrompeu.
- Manda ver camarada, o povo gosta é disso. Liquida logo o assunto! Enquanto você fica fazendo análises intelectualizadas... chamam de foca, principiante, vendido...
Novamente, não dei ouvidos aos comentários, mesmo porque tenho comigo cartas de referência de todos os lugares em que trabalhei. Tenho um currículo, não tenho uma “capivara” ilustrada por roubo de cheques, carro, adulteração de documentos e processos por falsidade ideológica. Tenho inclusive o respeito e a amizade de conceituados jornalistas brasileiros pela qualidade de meu trabalho.
E o telefone urrava...
Sem ter mais tempo para pensar e na função de editor precisava tomar uma decisão. Vamos publicar! Fizemos nossa própria degravação e a transcrição do diálogo no formato jornalístico. Estava praticamente convencido de que realmente existia o interesse público no caso. Homens públicos devem se dar ao respeito!
Arquivo transferido para a gráfica e o jornal já estava na pauta de impressão. Fim de expediente!
Em casa, era preciso aliviar a mente depois de um dia tão corrido e diferente. Enquanto resolvia com meus filhos algumas pendências de nossa Liga Espanhola no vídeo game, as indagações sobre a ética insistiam em atormentar minha cabeça. Lembrei também da importância da instituição denominada família (embora a minha muitas vezes não tenha sido respeitada por imbecis, covardes e senhorzinhos do engenho). Não poderia cair na vala dos comuns, no olho por olho que já deixou muita gente cega.
Interrompido o contra-ataque do Athletic de Bilbao, era preciso telefonar para a gráfica.
- Parem as máquinas!!! Amanhã mandaremos uma nova edição.
Não era possível seguir em frente, pois meus princípios éticos, cristãos e o respeito que tenho pelo valor de uma família não permitiam a divulgação do escabroso ocorrido.
No dia seguinte, comuniquei a Justiça que também tinha recebido o famoso CD e que havia decido não publicar o caso. Para não gerar curiosidade, optei em destruir o que tinha recebido.
Com a sensação de ter cumprido o papel que me cabe no latifúndio, pude dar mais atenção ao meu campeonato espanhol onde já não havia a possibilidade para reviravoltas, pois o Barcelona já tinha disparado na pontuação, sobrando apenas ao meu modesto escrete basco buscar uma vaga numa futura Copa dos Campeões (ETA, não era para estar soltando bomba?) Sem chance! Como essas crianças aprendem rápido as coisas. Vai muito do que ensinamos e do que eles ouvem por aí. A criação também colabora bastante. Num mundo cada vez mais capitalista, infelizmente as crianças crescem tendo como principal referência o dinheiro. Serem ricas no futuro! Pra que estudar, não é mesmo? Que Deus seja generoso e permita que um dia eu possa disputar uma partida de vídeo game com meus netos. Tem coisa mais gostosaaaaaaaaaa?

Posted by Sandino at dezembro 12, 2008 02:18 PM

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