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fevereiro 03, 2009

O Curioso Caso de Benjamin Button

Onde o tempo se cruza
por Cloves Geraldo*

De qualquer forma, é angustiante saber que o tempo se cruza, em posições investidas, e o velho, que nasceu novo, torna-se criança, e o novo, que nasceu velho, retorna à seu início. Essa dialética do ciclo da vida, vista por F.Scott Fitzgerald, em seu conto “O Curioso caso de Benjamin Button” (1), forma ciclos precisos da existência humana, a partir de matrizes sobre as quais nenhum controle a ciência ou o homem têm. Às vezes, pode-se entender suas bases, assentadas em algumas regras, detectadas pelos exames de DNA, porém, no fim, fica-se com a impressão de que resta apenas a metafísica. Impressão esta que o cineasta David Fincher dá em seu filme, baseado no conto homônimo, acima citado. E que a bailarina Daisy (Cate Blanchettt) sintetiza ao tentar consolar Benjamin Button (Brad Pitt), quando este lhe explica que teme trazer-lhe problemas ao cumprir seu ciclo vital: “Não importa, todos nós terminamos em fraldas”. Cruel, talvez inevitável, no entanto, verdadeiro, que provoca um vazio e uma incerteza que gostaríamos de ver superados, senão pela eterna juventude, mas, simplesmente, pela vida eterna.
Estes dilemas, colocados por Fitzgerald no início do século XX, época de grandes transformações científicas e sociais, podem ser vistos hoje como impasses, ainda longe de ser superados. Logo na abertura do conto, ele mostra esta sintonia com as mutações que só anos depois foram integradas à vida das pessoas comuns: ”Lá pelo ano de 1860 era de bom-tom nascer em casa. Atualmente, segundo me dizem, os altos deuses da medicina decretaram que os primeiros vagidos do recém-nascido devem ser lançados no ambiente anestésico de um hospital, de preferência um hospital elegante (...)”(2). Mutações não de todo incorporadas por quem as via como repositório de radicalidade, necessitando, pois, ser operada no fluir do tempo para que sua influência fosse menos danosa. Nada melhor assim, que o relógio girasse ao contrário, como num flashback, em que tudo retorna ao período anterior ao fato em ocorrência.

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Filme e conto mantêm posições distantes
Deste ponto de vista, o do relógio, girando ao contrário, tem-se a estrutura do filme de Fincher e a dialética da existência de Fitzgerald. O cineasta usa imagens e música para fazer escoar o fluxo da memória e o escritor usa o tempo reverso para refletir sobre como seria se, de repente, nossa vida começasse com uma fusão de velhice e rejuvenescimento. Não se viveria, em ambos os casos, num crescendo, mas numa constante incerteza sobre como sobreviver quando se perde o controle de seu fluxo vital. De qualquer forma, filme e conto estão de tal modo distantes um do outro que qualquer comparação, por mais acertada que fosse, logo se perderia. Enquanto, Fitzgerald centra sua narrativa na forma como a sociedade de Baltimore convive com o “caso Benjamin Button”, Fincher e seus roteiristas Eric Roth e Robin Swicord preferem usar apenas a história de um homem que nasceu velho e vai, com o tempo, se tornando jovem, intercalando memória, melodrama e metafísica. E somos levados a pensar em como seria se o relógio da existência girasse ao contrário.
No entanto cada um cumpre seu objetivo de forma adversa. Fitzgerald observa a forma como a alta burguesia de Baltimore e a escola, em Yale, onde Button foi estudar o recebem irados e desconfiados. “(...) Um homem de sua idade procurando matricular-se como calouro! Dezoito anos, hem? Bem, dou-lhe dezoito minutos para desaparecer da cidade”, ameaça-o, expulsando-o o diretor da escola. Joga com a reação de parte da sociedade a alguém sobre o qual não se quer indagar e, cuja diferença, a descontrola. Fincher, não, usa a memória para fixar um dado da existência sem se prender a ele; seu filme percorre a mutação da Benjamin Button, a partir de sua relação com Daisy, com a qual faz contraponto. O conto de Fitzgerald, assim, torna-se tão só uma referência, sem que caia no vazio ou no superficial. Até mesmo o tão execrado recurso melodramático, pontuado pelos acordes do piano do autor da trilha sonora, Alexandre Desplat, contribui para o fluir dos 166 minutos do filme. Primeiro pela dialética do envelhecer de Daisy, que Fincher expõe logo inicio, e o rejuvenescer de Button. Em algum momento, os pontos de envelhecimento e de rejuvenescimento se cruzarão e nisto se constitui a eficiência do recurso melodramático.

Memória já foi tema de diversos filmes
O recurso da narrativa, a partir da memória, já foi usado com genialidade por vários diretores: Alain Resnais (“Ano Passado em Mariembad” e “Hiroshima Mon Amour”), Ingmar Bergman (“Morangos Silvestres”) e Akira Kurosaura (“Rashomon”), e não se pode dizer que Fincher fez o mesmo, dado que os propósitos são diversos. Ele sobrepõe a narrativa em off de Button à de Daisy, usando Catarine (Julia Ormond) como leitora/narradora, incluindo na mesma seqüência vários níveis de ações: a descoberta de Catarine, as lembranças de Daisy e as revelações de Button. Rende várias seqüências memoráveis: Daisy dançando balé enquanto Button a observa e ouve-se ação e música em segundo plano; ou quando Button e Daisy vão ao restaurante, depois de anos longe um do outro, e percebe-se o passar do tempo pelas músicas que marcam o que lhes aconteceu. São belos recursos e enriquecem a narrativa. Ficamos com a sensação de que algo transcorre à nossa frente, sem que o vejamos, mas o sentimos com intensidade. Daí a eficiência de se unir ação à música.
Benjamin Button de Fincher, por outro lado, está povoado de personagens que ampliam a visão do dilema do homem que cumpre o inverso de sua existência. Sua afirmação começa quando ele se une à tripulação do barco Chelsea, pois aprende não só o ofício de marinheiro como o de conviver num ambiente hostil, porém cheio de vida. Nele circulam homens embrutecidos pelo cotidiano de carregar e descarregar a embarcação, prostitutas que se enfileiram para receber “seus homens”, capitão cheio de tatuagens disposto a viver com intensidade; pessoas enfim integradas a seu ciclo existencial. Nenhum deles o perturba com indagações ou com sua condição indiferenciada. Mesma receptividade obtém desde o início da afro-americana Queenie (Tarazi P. Henson), que o adota, quando é largado no asilo onde ela trabalha. Ela o aceita sem se importar com sua diferença, talvez identificada não só com sua condição de criança carente, mas pelo fato, também, de ser viver deslocada numa sociedade que a exclui. Por mais que Fincher não inclua nenhum diálogo que o ateste, as reações de Queenie o comprovam.

Button desfaz-se de bens materiais
De qualquer forma, Fincher deixa de lado a racionalidade. Ela está implícita no impasse vivido por Benjamin Button: o de não poder desviar-se do ciclo de sua existência. Única condição indiferenciada do determinismo de uma vida marcada pela exceção ou não, que não pode ser mudada pelo mecanismo científico. Diferente dos replicantes de “Blade Runner, O Caçador de Andróides”, que procuram ansiosos o cientista que os criou para ampliar seu tempo de existência. Alguém terá de cuidar dele, Button, para que cumpra o reverso existencial, a exemplo do que acontece com homens e mulheres na terceira idade. Então, a angústia se estabelece, numa situação em que os seres humanos sabem ser inevitável; tão inevitável como é com ele, Benjamin Button. Sua consciência deste estágio de sua vida o leva a desfazer-se de bens materiais; mergulhar-se numa existência em que os limites foram abandonados. Ganha sentido, então, a certeza de que qualquer bem material é inútil.
No final, pensa ele, nada daquilo evitará sua dependência de seja lá de quem for. E Daisy cuidando do adolescente e da criança Benjamin Button é horripilante. Dá nó na garganta, sente-se o vazio e a incerteza. Não é trair o espectador ou tirar-lhe o mistério e a emoção de ver o filme citar os dois parágrafos finais do conto de Fitzgerald: ”Não se lembrava. Não se lembrava sequer, claramente, se o leite era quente ou frio em sua última refeição, ou de que modo os dias passavam: havia apenas o seu berço e a presença familiar de Nana. Depois, já não conseguia recordar coisa alguma. Quando sentia fome, chorava – nada mais. Apenas respirava através dos dias e das noites e, sobre ele, havia suaves murmúrios e ruídos que mal ouvia, e odores levemente diferentes, e luz e treva.
“Depois, tudo se tornou escuro, e o berço branco, e os vagos rostos que se moviam em torno, e o cálido e doce aroma do leite, se dissiparam de todo de sua mente”. Algo indefinível se esvai nestas palavras, idêntico ao replicante (Rudger Hauer) agonizando sob a chuva, enquanto sua vida se esvai, por ter vencido seu período de existência, enquanto ser tecnológico. E embaralha noções de eternidade, ciência, racionalidade e metafísica. Algum ponto de DNA, diria um cientista precisa ser alterado para que possamos continuar a existir. Vale a pena retomar o conto de Fitzgerald e assistir o filme de Fincher (“Seven”, “Clube da Luta”). Afinal, que limites os homens não impõem si próprios, que não possam superar, ainda que levem décadas para descobrir como?

“O Curioso Caso de Benjamin Button” (“The Curious Casa Of Benjamin Button”). Adaptação: Eric Roth e Robin Swicord. Roteiro: Eric Roth. Fotografia: Cláudio Miranda. Música: Alexandre Desplat. Baseado no conto homônimo de F.Scott Fitzgerald, do livro “6 Contos da Era do Jazz”. Diretor: David Fincher. Elenco: BGrad Pitt, Cate Blanchett, Tarazi P. Henson, Julia Ormond, Jason Fleming, Elias Koteas.

(1) Fitzgerald, F.Scott, 6 Contos da Era do Jazz, O Curioso Caso de Benjamin Button, Editora Civilização Brasileira S.A, 1962;
(2), Obra cit., pág.6;
(3) Obra cit., pág. 80;
(4) Obra cit., pág. 96.

*Cloves Geraldo, Jornalista

Posted by Sandino at fevereiro 3, 2009 11:57 PM

Comments

Ola muito legal seu comentario sobre o filme, adorei sua leitura, demais...
Vou virar leitor assisduo de seu blog, até mais.
Abraços

Posted by: Leonardo de Medeiros at fevereiro 9, 2009 10:08 PM

magnifico artigo. gosto muito de literatura e cinema. parabens.

Posted by: wilson junior at junho 14, 2009 02:19 PM

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